9 de jun. de 2013

Estatuto do nascituro, a questão do estupro e a pré-história dos direitos das mulheres

Atenção: Esse artigo reflete a opinião de apenas uma das colunistas do Antes que Ordinárias, Letícia Magalhães, e não necessariamente de todas as colaboradoras.

As leis brasileiras são algumas das mais complicadas e rebuscadas do mundo. A recente aprovação do Estatuto do Nascituro, além de causar muita polêmica, em especial na Internet, reflete essa complicação. Seu texto breve, que pode ser encontrado na íntegra AQUI, embora não revogue algumas medidas legais sobre o aborto, em muito as atrapalha ao estabelecer uma série de direitos ao embrião / feto.
No Brasil é permitido o aborto no caso de risco de vida para a mãe, gravidez resultante de estupro e fetos anencéfalos. Como o estatuto prevê que os direitos do embrião / feto devem ser garantidos mesmo em caso de deficiência física ou mental, a interrupção da gravidez no caso de anencefalia, aprovada em nosso país há pouco mais de um ano e bastante discutida, fica em aberto. Some à discussão o caso de uma moça de El Salvador, país que não permite o aborto, que descobriu que a gravidez de seu feto anencéfalo podia matá-la, considerando seu histórico de lúpus e problemas renais. Depois de debates e abaixo-assinados, foi realizada uma cesariana na moça.

O ponto mais polêmico, obviamente, é a garantia da continuidade de uma gravidez causada por estupro e, no caso de a mãe passar por dificuldades financeiras, receber ajuda governamental, medida que foi apelidada de Bolsa Estupro (e, conhecendo o “jeitinho brasileiro”, nem me espantaria ao ver alguém inventando um estupro para receber o benefício). Em tal caso a falta de dinheiro é o menor dos problemas: a tortura psicológica não está presente apenas em criar o filho de um estuprador (um ponto é que a criança pode ser dada para adoção se a mãe quiser), mas sim ter de gerá-lo, carregá-lo e pari-lo. Está prevista ajuda psicológica a estas gestantes, mas, como boa parte das promessas na área de saúde no Brasil, é muito provável que isto também não seja cumprido. O mais absurdo é a ideia de localizar o estuprador e obrigá-lo a pagar uma pensão, o que seria, além de uma humilhação incomensurável, a comuta da prisão por uma fiança.

Os debates sobre aborto são muito acalorados e os argumentos, os mais diversos possíveis, dos bem fundamentados até os esdrúxulos. Há quem diga que a legalização do aborto, assim como uma hipotética descriminalização da maconha, deixaria as mulheres menos conscientes, em especial as adolescentes, que transariam como se não houvesse amanhã, sabendo que poderiam interromper a gravidez. Porém, da mesma forma que acontece com quem realmente quer usar drogas, a mulher que de fato deseja um aborto vai procurar todos os meios de fazê-lo. Milhões de abortos são feitos clandestinamente todos os anos, tornando o assunto uma questão de saúde pública, de controle de danos.
De fato, muitas mulheres que optam pelo aborto não se protegeram na relação sexual. Mesmo assim, elas não deveriam ser obrigadas a levar a gestação adiante. Se elas querem abortar, provavelmente não quererão cuidar da criança após o nascimento e até ela ser independente. Boas pessoas podem nascer de gestações indesejadas, mas grandes bandidos, estupradores e males em geral para a sociedade também.

Outras tantas mulheres, meninas e adolescentes, por total impossibilidade de começarem a vida sexual, não usam contraceptivos. Se uma delas for estuprada, pode vir a engravidar. No caso de meninas muito jovens, o caso pode chegar ao absurdo, como um que ocorreu alguns anos atrás e cujos detalhes mais ínfimos não lembro. Era uma menina de nove anos que foi estuprada e engravidou de gêmeos. Uma quantidade vergonhosa de manifestantes se opôs à interrupção de uma gravidez provavelmente fatal. Muitos deles, como os religiosos, acreditam que um embrião que é apenas uma promessa de vida vale mais que a vida concreta de uma pessoa que já nasceu e pecou. Digo promessa de vida baseando-me em um documentário que vi nos idos de 2006 e que me causou profunda impressão. Nele, há um close no rosto de um embrião em um poderoso ultrassom 3D, e a fala: “não é garantido que isso vá se transformar em um olho. Aliás, é muito provável que isso nunca venha a ser um olho”. Que o digam as várias mulheres que sofreram um ou mais abortos espontâneos, a forma de a natureza dizer que algo não estava se desenvolvendo bem.
Voltando ao Estatuto, seu maior retrocesso está nas entrelinhas: a pesquisa com células-tronco seria proibida se o texto for interpretado ao pé da letra. Garantindo direitos até ao embrião fecundado in vitro, o Estatuto dá sua própria definição de quando a vida começa: na fecundação. Definição esta que, vale ressaltar, não se chegou a um acordo desde que os debates começaram, com os pais da filosofia na Grécia antiga. Assim, todas as pesquisas responsáveis por desenvolverem vacinas e darem esperança de cura e reabilitação para pessoas vivas seriam jogadas fora.
Nossos congressistas deveriam nos representar, mas a maioria tanto do Congresso quanto da Câmara é formada por homens maiores de quarenta anos, ou seja, com visões que tendem a ser mais conservadoras. Em geral, o aborto foi discutido e legalizado em países desenvolvidos recentemente. Em pesquisa para meu novo livro, já concluído mas ainda não publicado, descobri que até a década de 1970 o estupro era culpa da mulher, só deixando de lhe cair esta culpa se ela provasse que tentou seriamente se defender. Outro fenômeno recente são os abaixo-assinados na Internet e, obviamente, existe também um contra o Estatuto do Nascituro. Lembrando que a petição para o Impeachment de Renan Calheiros teve mais de um milhão de assinaturas e a para a saída de Feliciano da Comissão de Direitos Humanos contou outras tantas centenas de milhares, mas nenhuma das duas surtiu efeito, é provável que o fim do Estatuto também não seja alcançado. Mas que ele seja cumprido, essa já é outra história.

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