Atenção: Esse artigo reflete a opinião de apenas uma das
colunistas do Antes que Ordinárias, Letícia Magalhães, e não necessariamente de
todas as colaboradoras.
As leis brasileiras são algumas das mais complicadas
e rebuscadas do mundo. A recente aprovação do Estatuto do Nascituro, além de
causar muita polêmica, em especial na Internet, reflete essa complicação. Seu
texto breve, que pode ser encontrado na íntegra AQUI, embora não revogue
algumas medidas legais sobre o aborto, em muito as atrapalha ao estabelecer uma
série de direitos ao embrião / feto.
No Brasil é permitido o aborto no caso de risco de
vida para a mãe, gravidez resultante de estupro e fetos anencéfalos. Como o
estatuto prevê que os direitos do embrião / feto devem ser garantidos mesmo em
caso de deficiência física ou mental, a interrupção da gravidez no caso de
anencefalia, aprovada em nosso país há pouco mais de um ano e bastante
discutida, fica em aberto. Some à discussão o caso de uma moça de El Salvador,
país que não permite o aborto, que descobriu que a gravidez de seu feto
anencéfalo podia matá-la, considerando seu histórico de lúpus e problemas
renais. Depois de debates e abaixo-assinados, foi realizada uma cesariana na
moça.
O ponto mais polêmico, obviamente, é a garantia da
continuidade de uma gravidez causada por estupro e, no caso de a mãe passar por
dificuldades financeiras, receber ajuda governamental, medida que foi apelidada
de Bolsa Estupro (e, conhecendo o “jeitinho brasileiro”, nem me espantaria ao
ver alguém inventando um estupro para receber o benefício). Em tal caso a falta
de dinheiro é o menor dos problemas: a tortura psicológica não está presente
apenas em criar o filho de um estuprador (um ponto é que a criança pode ser
dada para adoção se a mãe quiser), mas sim ter de gerá-lo, carregá-lo e
pari-lo. Está prevista ajuda psicológica a estas gestantes, mas, como boa parte
das promessas na área de saúde no Brasil, é muito provável que isto também não
seja cumprido. O mais absurdo é a ideia de localizar o estuprador e obrigá-lo a
pagar uma pensão, o que seria, além de uma humilhação incomensurável, a comuta
da prisão por uma fiança.
Os debates sobre aborto são muito acalorados e os
argumentos, os mais diversos possíveis, dos bem fundamentados até os
esdrúxulos. Há quem diga que a legalização do aborto, assim como uma hipotética
descriminalização da maconha, deixaria as mulheres menos conscientes, em
especial as adolescentes, que transariam como se não houvesse amanhã, sabendo
que poderiam interromper a gravidez. Porém, da mesma forma que acontece com
quem realmente quer usar drogas, a mulher que de fato deseja um aborto vai
procurar todos os meios de fazê-lo. Milhões de abortos são feitos
clandestinamente todos os anos, tornando o assunto uma questão de saúde
pública, de controle de danos.
De fato, muitas mulheres que optam pelo aborto não
se protegeram na relação sexual. Mesmo assim, elas não deveriam ser obrigadas a
levar a gestação adiante. Se elas querem abortar, provavelmente não quererão
cuidar da criança após o nascimento e até ela ser independente. Boas pessoas
podem nascer de gestações indesejadas, mas grandes bandidos, estupradores e
males em geral para a sociedade também.
Outras tantas mulheres, meninas e adolescentes, por
total impossibilidade de começarem a vida sexual, não usam contraceptivos. Se
uma delas for estuprada, pode vir a engravidar. No caso de meninas muito
jovens, o caso pode chegar ao absurdo, como um que ocorreu alguns anos atrás e
cujos detalhes mais ínfimos não lembro. Era uma menina de nove anos que foi
estuprada e engravidou de gêmeos. Uma quantidade vergonhosa de manifestantes se
opôs à interrupção de uma gravidez provavelmente fatal. Muitos deles, como os
religiosos, acreditam que um embrião que é apenas uma promessa de vida vale
mais que a vida concreta de uma pessoa que já nasceu e pecou. Digo promessa de
vida baseando-me em um documentário que vi nos idos de 2006 e que me causou
profunda impressão. Nele, há um close no rosto de um embrião em um poderoso
ultrassom 3D, e a fala: “não é garantido que isso vá se transformar em um olho.
Aliás, é muito provável que isso nunca venha a ser um olho”. Que o digam as
várias mulheres que sofreram um ou mais abortos espontâneos, a forma de a
natureza dizer que algo não estava se desenvolvendo bem.
Voltando ao Estatuto, seu maior retrocesso está nas
entrelinhas: a pesquisa com células-tronco seria proibida se o texto for
interpretado ao pé da letra. Garantindo direitos até ao embrião fecundado in
vitro, o Estatuto dá sua própria definição de quando a vida começa: na
fecundação. Definição esta que, vale ressaltar, não se chegou a um acordo desde
que os debates começaram, com os pais da filosofia na Grécia antiga. Assim,
todas as pesquisas responsáveis por desenvolverem vacinas e darem esperança de
cura e reabilitação para pessoas vivas seriam jogadas fora.
Nossos congressistas deveriam nos representar,
mas a maioria tanto do Congresso quanto da Câmara é formada por homens maiores
de quarenta anos, ou seja, com visões que tendem a ser mais conservadoras. Em
geral, o aborto foi discutido e legalizado em países desenvolvidos
recentemente. Em pesquisa para meu novo livro, já concluído mas ainda não
publicado, descobri que até a década de 1970 o estupro era culpa da mulher, só
deixando de lhe cair esta culpa se ela provasse que tentou seriamente se
defender. Outro fenômeno recente são os abaixo-assinados na Internet e,
obviamente, existe também um contra o Estatuto do Nascituro. Lembrando que a
petição para o Impeachment de Renan Calheiros teve mais de um milhão de
assinaturas e a para a saída de Feliciano da Comissão de Direitos Humanos
contou outras tantas centenas de milhares, mas nenhuma das duas surtiu efeito,
é provável que o fim do Estatuto também não seja alcançado. Mas que ele seja
cumprido, essa já é outra história.
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